quinta-feira, 3 de março de 2011

Encontro na beira da cama

É meio longo, e alguns dos nomes descritos já não estão mais entre nós. Mas este 
ENCONTRO NA BEIRA DA CAMA, realmente aconteceu

         O ano é 1975. Chegando ao fim, novembro quase se encerrando.
         No país, o presidente Geisel tem dificuldade de levar avante sua “abertura lenta e gradual”. NO dia 10 de outubro libera a exploração de petróleo através de contratos de risco, deixando alguns nacionalistas de cabelo em pé. E no dia 25 do mesmo mês morria no Doi-Codi o jornalista Vladmir Herzog, que foi “suicidado” pela ala dura do exército, que não via com bons olhos algumas atitudes do presidente.
         Nas ruas, o povo tentava voltar à normalidade. Combatentes de ambos os lados das batalhas do período Médici, buscavam um retorno às suas atividades de sempre. Metalúrgicos querendo emprego, médicos querendo clinicar, soldados querendo ir para os quartéis.
         Mas foi um recomeço difícil. Para ambas as partes. A história tem o vício ou a necessidade de registrar apenas os grandes eventos. As passeatas, as tentativas de golpe, a missa de sétimo dia do próprio Herzog com milhares de pessoas na Catedral da Sé. E a nós, familiares, cabe relembrar as histórias particulares.
         Uma delas aconteceu quando o meu pai foi internado depois de um acidente logo após o dia de finados de 1975 e que acabou tirando a vida dele alguns dias mais tarde.

Para um era uma visita a um irmão mais velho hospitalizado em virtude um acidente. Um ônibus, uma rua movimentada, atravessou a rua sem olhar direito. E agora ali, no hospital.
         Para o outro era uma visita a um paciente internado. Nem era seu paciente. Um outro colega atendera à emergência quando a pessoa acidentada deu entrada no hospital. Olhou para a ficha e nem leu o nome. Viu a evolução do caso, os remédios prescritos e foi cumprir sua obrigação.
         Para o primeiro era apenas um dia de folga depois de alguns dias de trabalho intenso. Seus superiores não davam folga. Nem pensou em tirar a farda.
         Para o segundo era uma intenção de retornar à normalidade depois dos dias tensos de algum tempo atrás.
        
         O médico entrou no quarto e lá estava o paciente na cama. Sedado. Ao seu lado, sentado, um homem de seus 40 anos e ao lado deste... Ao lado deste o oficial do exército que há pouco tempo atrás estava atrás dele, perseguindo-o, ordenando-lhe que parasse de executar algumas atividades que estavam incomodando as autoridades competentes do país. Que poderia querer com ele, ali, novamente. Já estava há quieto, não tinham conseguido tudo que queriam? Agora resolveram acompanhar até as suas visitas médicas. Quando isso ia parar? E o outro que ali estava? Não, este era filho do velho deitado. E por que o oficial me olha assim?

         O oficial olhou ansioso para o médico que entrava no quarto. Tomara que ele trouxesse boas notícias sobre o seu irmão. Esse irmão que era o mais velho e o mais querido por todos. Com seu jeito rude de carpinteiro, sempre protegeu o seu irmão mais novo, como alás protegia a todos. E agora ali deitado. Mas, espera aí. Conheço esse médico. É aquele subversivo que o comandante pediu  para dar um susto. – Não é peixe grande, Simonato. Só dá uma seguida ostensiva nele que é para ele saber que a gente está de olho. – E agora ele está aqui. Será que me viu entrar e veio tirar satisfações? Dou-lhe um couro aqui mesmo. Não, não é não. É o médico do Zé. Ah. Meu Deus! Será que ele se lembra de mim e pior, vai querer se vingar do meu irmão pelo susto que lhe dei? E por que ele me olha assim?

         No quarto, mais duas pessoas. Uma deitada na cama, semi consciente, nada percebia do que estava acontecendo. O outro não entendia a cena. Seu tio e o médico que cuidava do seu pai, parados, um olhando para o outro, fixos, quase sem respirarem, se encarando como dois galos de briga, com um misto de surpresa e raiva, mas ao mesmo tempo com uma leve sensação de medo.
         O médico é o primeiro a reagir. Seu dever profissional fala mais alto. Dirige-se ao paciente e inicia sua rotina.
         O oficial sente-se na obrigação de falar:
         — É meu irmão. Sofreu um acidente.
         — Seu irmão?
         — Sim. Este é o filho dele. Meu sobrinho.
         — Já o conheço. Já o vi por aqui. Como o seu pai está? Algum comentário?
         O filho leva um tempo para reagir. Toda a cena parece meio teatral. Os dois, médico e oficial continuam com uma polidez forçada. Consegue responder:
         — Sim, sim. Passou melhor a noite. Mas está meio agitado.
         O médico inicia então seu exame. De vez em quando, olha para o oficial. Lembra-se de quando esteve na mão dele. Lembra-se do susto, da raiva. Da imensa raiva oriunda da impotência de não saber brigar contra tudo o que estava acontecendo no seu  país. Sua mente está ali, apalpando pele, examinando ossos, mas ao mesmo tempo está numa sala, ouvindo ordens daquele homem vestido de verde. Que devia fazer isso, que devia fazer aquilo.
         Enquanto o médico exerce sua função, o oficial fica lembrando da missão que teve. Aquele médico parecia tão inocente na época, mas durante a palestra foi mostrado como estes mais inocentes é que eram os cabeças do movimento que tentava implantar o comunismo no Brasil, que alimentava os ladrões de bancos, que davam abrigo e proteção para os bandidos que não gostavam do Exército. Exército que ele aprendeu a amar e a respeitar desde quando se alistou há mais de trinta anos. Será que ele lembra de mim?
         — Olha – disse o médico – a situação não está muito boa. Talvez tenhamos que opera-lo. Tem um coágulo no cérebro que deverá ser operado.
         — É muito grave? – perguntou o filho.
         — É preocupante. Na idade dele, qualquer intervenção é perigosa. Ele já teve algum problema?
         Enquanto o sobrinho relatava ao médico a história dos problemas médicos do seu irmão, o oficial ficava por ali, esperando, pensando em como conversar com aquele médico. Explicar-lhe que estava cumprindo seu papel da mesma forma que o doutor estava exercendo o dele. Que tinha que fazer bem feito o que fez, e que principalmente, o seu irmão não tinha nada com isso. Continuava a olhar furtivamente o seu oponente. Não sabia se devia baixar o olhar, mas não ia demonstrar fraqueza. Também não queria encará-lo, para não parecer provocação.
         O médico continuava seu trabalho. Nem por um momento passou-lhe pela mente tratar seu paciente de forma menos eficiente, aliás, trataria bem o próprio oficial se fosse que ali estivesse deitado. Mas não podia deixar de recordar a vontade que sentia de lhe dizer umas “verdades”. Mas, a morte recente do jornalista ainda estava fresca na cabeça dele. Sabia que aquela era uma guerra não acabada, e talvez não acabasse nunca. Agora, aqui neste quarto, era um momento de trégua.
         A cena termina. O médico retira-se. Cumprimenta polidamente os dois acompanhantes. Tem outros pacientes para visitar. No quarto, depois de um tempo, o oficial explica a seu sobrinho quem era o médico e o que tinha acontecido entre eles.
         O sobrinho entendeu então o silêncio, os olhares, e somente muitos anos depois, foi tomar consciência que tomou parte de uns dos inúmeros conflitos pessoais daquilo que a história relatará como um período negro da história do Brasil.


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