UM CAMINHO
DIÁRIO
Uma rua, comprida, que nasce na beira do rio Tietê e
vai morrer dois quilômetros adiante numa praça da periferia de São
Paulo. No seu começo, além de se ver o rio, vê-se muitas árvores
de um imenso jardim, tão grande que é quase um parque e umas casas
velhas. Depois de cruzar a avenida a rua já se sofistica (pouca
coisa, pois estamos num bairro operário). Algumas lojas e uma escola
estadual.
Antes de chegar na linha do trem, um prédio abriga uma
igreja, destas que nos anos 90 se tornariam mania; aqui, apenas uma
precursora. A linha de trem precisava ser atravessada correndo pois
os trens vinham dos dois lados, e onde morreram muitos pedestres
desavisados.
A lembrança deste trem trás de volta a amiga bem mais
velha, com quem subia toda a noite esta rua, vindo da escola. Os dois
cantando “Quem é você” de Chico Buarque, eu fazendo o “pierrô”
ela a “colombina” , conseguindo harmonizar os versos de tanta
repetição. A irmã dela, mais nova, que estudava na minha classe,
vinha quieta e tímida ao nosso lado. Uma tão extrovertida e alegre,
e outra tão fechada.
Na passagem de nível o desvio até o viaduto recém
inaugurado, distante duas quadras, porque alguns dias antes alguém
fora atropelado ali. A irmã mais velha morria de medo e forçava
aquela volta. Voltávamos à rua e seguíamos juntos até a casa
delas.
Logo após a linha vinha a ladeira onde o ônibus
resfolegava e gemia, subindo tão devagar que mais valia ir a pé.
Não era a toa que o apelido dele era Poeirinha. Estava sempre
atrasado, e apesar de sair de perto da minha escola, e passar na
esquina de casa, só o tomava em dias de chuva.
No meio da ladeira a travessa onde um dia, anos depois,
a paquera abusada foi bem sucedida, mas esta história tem mais a ver
com ônibus vazio, do que com a rua de todo dia.
Também pela metade da ladeira ficava outro colégio,
desta vez velho conhecido, pois ali estudei os terceiro e quarto anos
primários, e uma outra pequena escola, esta talvez mais marcante,
com nome de Anchieta, pois lembro dela, mesmo tendo cursado apenas
dois meses como preparatório para entrar no ginásio do Estado.
Vinha a seguir uma praça e no lado formado pela rua que
falo ficava o posto que um dia pegou fogo e agitou todo o bairro. Na
esquina uma padaria que de tão movimentada transformou seu dono em
vereador, e o filho dele em apresentador de um programa sobre
Portugal.
Depois da praça, quatro quarteirões que se perderiam
na sua simplicidade, não fosse a feira semanal que aos domingos
preenchia aquele espaço de vozes, sons e muita gente. Comprava-se
café perto da padaria, e andava-se em toda a extensão da mesma até
chegar em frente a adega onde terminava a feira.
Ao passar esta adega, um outro quarteirão, o último da
rua. Um belo terreno onde o Cruzeiro F.C.. se apresentava todos os
domingos, e onde brigas homéricas se sucediam. Numa destas os
contendores foram parar nos sobrados que estavam sendo construídos
do outro lado rua, e de onde não sobrou quase nenhuma madeira
inteira. Este terreno transformava-se em bela lagoa em dias de chuva,
até que construíram ali mais um colégio, famoso pela qualidade e
pela quantidade de alunos.
Ao fim de mais uma ladeira, esta pequena, o
entroncamento com outra praça, que abrigou a primeira biblioteca
infantil do bairro. Na esquina uma padaria e uma farmácia, mais um
consultório, pela fama que tinha o farmacêutico.
Todas as noites subia por esta rua ao voltar da escola.
Acompanhado pelas amigas até a praça, e depois sozinho. Geralmente
atravessava a praça em diagonal para pegar a Coelho Lisboa. Prestava
atenção naqueles prédios todos, imaginando o que se passava lá
dentro. Nas longas caminhadas até chegar em casa, ou então, em
noites de chuva, ao passar de ônibus. A rua Tuiuti é hoje uma rua
cortada. Uma estação do Metrô atrapalha ( ou facilita) o caminho.
Lojas e mais lojas se amontoam perto da Silvio Romero. Ainda tem
suas quatro escolas, o que num país de tantos analfabetos é de
fazer inveja em qualquer possível concurso que as ruas tenham entre
si. De vez em quando passo por lá a procurar o moleque, mas sei que
ele esta dentro de mim.
Na rua Tuiuti começa a rua dos Cristais, bem em frente
á igreja de um destes pastores, e por esta rua passei muitas vezes
em frente à casa de uma menina, mas isto já é uma outra história.